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Por que o Brasil é ruim de inovação?

Publicado em 09/11/2011

Alta dose de confiança nas relações pessoais. Líderes pragmáticos. Meritocracia. Transparência. Inovação. A falta deles explica por que estamos comendo poeira nos principais rankings internacionais.

Todos os estudos mostram que o Brasil é ruim de inovação. Há exceções aqui e ali (não vou ficar citando estatísticas), mas, no geral, é bem ruinzinho. Por que, hein? Quando os editores de Época NEGÓCIOS pediram minha opinião, fiquei inseguro – será que teria algo a declarar? Parecia mais coisa para economista, e eu não sou da turma. Leio os caras, é verdade, mas, desculpe a franqueza, acho-os chatos (exceção: Eduardo Giannetti). Alguém ainda agüenta debates sobre política monetária? Meta de inflação? Reunião do Copom? Respostas pela ordem: não, não, não. Bem, por vezes é conveniente ser franco-atirador. Sem o pedigree dos ph.Ds., me senti liberado. Se dissesse besteira, teria a desculpa de não ser especialista. Fui pesquisar (veja referências no nosso site), anotei temas e explicações que pareciam definir um padrão, e fui costurando fragmentos de idéias de outros. Baseei essa “costura” em evidências sustentadas pelo que a ciência sabe da natureza humana. Acho que cheguei a algo, mas é você quem julga. Uma coisa, de saída, pareceu certa: a “culpa” pela falta de inovação no Brasil não é das empresas. Empresas são animais econômicos previsíveis – elas vão aonde o dinheiro está. Se têm uma certeza razoável de que vale a pena investir em inovação (ou em qualquer outra coisa), elas o farão. Se não fazem, é porque o retorno disso é incerto. O que está por trás dessa incerteza é o seguinte: o nível de inovação de um país depende de um certo tipo de software.

Todo grupo humano – seja um país, seja uma empresa – tem um sistema operacional que define o que o grupo pode fazer. Que características deve ter o sistema operacional de um país para que ele seja capaz de inovar? A lista que compilei tinha elementos que estavam presentes em lugares tão diferentes como Suécia, Japão e Estados Unidos, por exemplo. Como Tolstói poderia ter dito, os países inovadores são ricos de maneira muito semelhante – têm sistemas operacionais que geram os mesmos efeitos. Países não inovadores, porém, são pobres cada um a sua maneira. Seus sistemas operacionais “dão pau” cada um de seu jeito. Se eu tivesse de resumir o que aprendi dos países que têm sistemas operacionais que promovem inovação, contaria a seguinte historinha:

O CONTO DOS INOVADORES

Nos países inovadores há um alto nível de confiança nas relações entre os indivíduos. Cooperação com base em reciprocidade é a norma mais arraigada nas relações sociais. Reciprocidade quer dizer: eu recebo proporcionalmente ao que dou. Alguém receber algo a que não faz jus não é tolerado, e não receber o que é justo em troca de uma contribuição legítima também não é.

Quando a Enron foi para o brejo, a televisão mostrou funcionários esvaziando gavetas aos prantos (por terem perdido empregos e fundos de aposentadoria), enquanto os chefões da companhia – que fraudaram e mentiram – saíam milionários. A raiva explodiu.

O homem da rua, o pequeno José ou João (ou Joe) não entende de finanças, estratégias ou modelos de negócio. Precisa de autoridades que o orientem. Quando um cara chamado Kenneth Lay (ex-CEO da Enron) garantiu que ia torná-lo rico, Joe acreditou. Quando percebeu que foi traído, a raiva tomou conta. Lay morreu semanas antes de ouvir sua sentença (que seria de 20 a 30 anos de prisão, no mínimo).

O clamor público nesse episódio pode ser comparado ao que ocorreu quando a TV mostrou o que, de fato, os EUA estavam fazendo no Vietnã. Num país inovador, a informação flui livremente. Há liberdade de comerciar e mercados livres. Mercados (regulados e controlados sempre que necessário) são essenciais. O que o colapso da Enron mostrou foi que uma empresa pode até enganar seus reguladores, seus contadores, seus fornecedores, mas não pode enganar o mercado. Ou ela dá um jeito de ganhar mais do que gasta ou vai desaparecer. Pode convencer seus fi nanciadores a mantê-la à tona por um tempo, mas vai acabar afundando.

Não há país inovador isolado do mundo. A energia empreendedora precisa de fronteiras abertas e estímulo para trocas e transações. Mas lembre-se: o mundo só vai confi ar em você se você se provar confiável. A riqueza depende de reciprocidade. O Vale do Silício é o ícone supremo da inovação, por sua cultura única de troca de informações entre engenheiros e pesquisadores (de empresas concorrentes!). Nem nos EUA há coisa igual. Os engenheiros mudam de emprego freqüentemente e ninguém liga a que eles levem segredos de uma empresa para outra. Direito à imaginação livre e competição baseada nela, imaginação.

O que garante o funcionamento do sistema operacional de países inovadores é a regra da lei (the rule of law). Um aparato jurídico que cuida para que as normas de convivência entre pessoas e instituições sejam seguidas por todos. Um funcionário mal remunerado de uma agência governamental americana pode processar Bill Gates e quebrar o monopólio da Microsoft. A corrupção é mantida em níveis mínimos.

Em países inovadores, é legítimo e bom acumular posses individuais. O que é seu é seu. Direito à propriedade/respeito a patentes é fundamental para induzir o investimento e a aceitação do risco por parte de pessoas e empresas. Mas países inovadores também penalizam fortemente os efeitos deletérios que a iniciativa individual possa trazer a quem não tem nada com isso. Não se admite nem pegar carona no esforço dos outros nem agir de forma a arriscar terceiros. Pirataria é crime sério. O início da reforma que está levando ao “capitalismo” chinês foi assim: os chineses passaram a ter direito de vender suas colheitas a quem pagasse mais.

Países inovadores têm uma ética de trabalho arraigada, uma crença em melhorar de vida graças ao esforço pessoal. Meritocracia. A crença de que a recompensa virá pelo esforço que cada indivíduo coloca nesse investimento. É assim que pensam as novas gerações de indianos e chineses que trabalham e estudam 15 horas por dia, sete dias por semana, ganhando muito pouco hoje, mas preparando- se para tomar conta do mundo amanhã.

Em países inovadores, a mentalidade “soma não zero” permeia toda a sociedade. Essa é uma norma cultural que diz que o bolo que existe hoje poderá crescer se houver colaboração. Minha vitória pessoal não se dá à custa da derrota de outro. A mentalidade oposta, “soma zero”, diz que o melhor é garantir logo sua fatia do bolo antes que outro o faça. Não há visão de destino compartilhado, ganha quem tirar mais para si.

Países inovadores valorizam a mentalidade científica e a racionalidade na busca de soluções; sociedades pobres tendem a abraçar o oculto e o mágico. Nessas, o religioso e o político se misturam. Acham que seu destino depende de salvadores messiânicos, ou da boa vontade dos deuses, não de seus esforços pessoais.

Países inovadores têm lideranças mais pragmáticas e menos ideológicas, que não hesitam em assumir posições impopulares para fazer o que deve ser feito. Países pobres têm versões diferentes daquilo que os antropólogos chamam de big men – lideranças truculentas que se impõem pela força, ou então populistas e carismáticos que manipulam a fraqueza e ignorância das multidões. Big men se especializam em conchavos com grupos de interesses diversos, e seu objetivo único é fi car no poder (precisa de exemplos?).

Finalmente, nas sociedades inovadoras há competição livre e um viés forte para experimentar e aprender com a experiência – uma forma saudável de se lidar com o erro. Sociedades não inovadoras tendem a se apegar ao certo, ao sem risco, ao garantido.

UMA PROPRIEDADE DIFERENTE: EMERGENTE

Nesse ponto eu estava meio enrolado: no “conto dos inovadores”, a maioria dos elementos do enredo é, digamos, comportamental. Há pouca coisa relativa à tecnologia no sentido costumeiro. Inovação não deveria depender mais de investimentos em tecnologia? Não, não deveria. Continue lendo e entenderá por que. Se quiséssemos projetar um país inovador do zero, por onde deveríamos começar?

Aprendi que inovação é uma propriedade emergente. Quer dizer o seguinte: num grupo (pessoas, empresas, países), inovação é algo que emerge – brota – quando existem certos encaixes entre vários elementos diferentes. Não é algo que possa ser embutido no sistema por decreto. Se o Brasil é ruim de inovação (e é mesmo), é porque faltam encaixes entre as peças certas. Ou essas peças não existem, ou os encaixes são ruins.

Dizem que funcionários da antiga burocracia soviética achavam que os Estados Unidos tinham um Ministério da Inovação (secreto). Esse seria o segredo mais bem guardado do país. Segundo pensavam, não se poderia ter tanta vitalidade inovadora sem que alguém estivesse gerenciando a coisa. O que ocorre é exatamente o contrário.

A gestão da inovação é como a gestão da marca (isso que hoje chamam de branding). Uma marca forte só existe quando há muitos elementos bem encaixados: pessoas competentes, logística, distribuição, comunicação, desenvolvimento de produto, serviço ao cliente, relações com fornecedores.... A marca emerge da interação entre todas essas coisas. É impossível ter marca forte sem os encaixes adequados entre os elementos que a compõem.

Repare que no conto dos inovadores alguns pedaços do enredo estão dentro de outros. Os temas se repetem em escalas diferentes. Cientistas chamam sistemas assim de complexos. Significa que há muitas partes que interagem, e cada uma é causa e efeito das demais.

Como não dá para separar causas e efeitos com nitidez, é difícil “desenrolar o novelo” e desenhar do zero um sistema operacional competente para que um país inove. Porém, as lições dos inovadores podem, sim, ajudar os não tão ricos a ir mais direto ao ponto.

O QUE É MESMO A TECNOLOGIA?

Há dois tipos de tecnologia fundamentais para a inovação. As primeiras são as tecnologias físicas. Essas são o que, em geral, temos em mente quando usamos o termo tecnologia: ferramentas de pedra lascada, foguetes espaciais, motores a explosão, microchips. Mas há outro tipo, ao qual geralmente não damos importância – as tecnologias sociais, maneiras de se organizar pessoas para colaborar em empreendimentos comuns. Por exemplo, a agricultura, a linha de montagem, a regra da lei, o dinheiro, a empresa em si, o sistema de franquia, os exércitos... É claro que as tecnologias físicas têm sido enormemente importantes, mas sem as sociais nada teria acontecido em larga escala.

Eis o segredo, então: no mundo global/ interconectado/digital, as tecnologias sociais são mais importantes para a inovação (geração de riqueza) do que as físicas. Sem tecnologias sociais o país tem de ficar na dependência de gênios para inventar artefatos que, eventualmente (um dia, talvez, quem sabe), serão usados para gerar riqueza. Apostar em gênios fora da média (para qualquer coisa) é uma péssima idéia. No enredo do “conto dos inovadores” não há nada parecido com “pessoas fora da média”.

Tecnologias sociais sempre foram vitais para a inovação. Nós, brasileiros, é que só estamos prestando atenção nelas agora. A China já foi líder mundial em tecnologias físicas. Inventou o ferro fundido, a bússola, a pólvora, o papel, a porcelana, a tipografi a, um monte de coisas. Sua frota era a maior do mundo, e seus navios viajavam para todo lado. Estavam prestes a virar o Cabo da Boa Esperança, subir a costa da África e “colonizar” a Europa quando um novo imperador chegou ao poder, decidiu que navios eram um desperdício e mandou desmantelar as frotas. A tradição perdeu-se. Governança (tecnologia social) é decisiva. Os países fortes em inovação têm sistemas operacionais desenhados para impedir que um maluco faça o que o imperador chinês fez. O maluco pode até chegar ao poder (pelo voto, sempre), mas não pode fazer o que lhe dá na telha.

Tecnologias físicas e sociais co-evoluem. Henry Ford não inventou o automóvel (uma tecnologia física), mas, sim, uma forma de produzir automóveis por meio da organização do trabalho em linhas de montagem (uma tecnologia social). A General Motors tomou a liderança da Ford nos anos 20 graças a uma inovação na forma de organizar a empresa em divisões (uma tecnologia social). A Toyota tomou a liderança da GM, neste ano, graças a formas inovadoras de produção e relacionamento com fornecedores (idem).

Em 2002, fi zeram uma pesquisa com 72 países ricos e pobres. O que se investigava era aquilo de sempre: “O que torna um país mais rico que outro?”. Eric Beinhocker, da consultoria de negócios McKinsey, e autor de The Origin of Wealth (“A origem da riqueza”), comenta: “Talvez se imaginasse que os fatores determinantes da riqueza de um país fossem coisas como a existência ou não de recursos naturais, a competência das políticas de governo, ou a sofi sticação de suas tecnologias físicas. Tudo isso conta, mas não é o principal. O fator mais importante são as tecnologias sociais do país. A regra da lei, a existência de direitos de propriedade, um sistema bancário organizado, transparência econômica, ausência de corrupção. Essas coisas desempenham um papel muito mais importante para o sucesso econômico do que qualquer outra categoria de fatores! Mesmo países com poucos recursos naturais e governos incompetentes se saem razoavelmente bem se têm tecnologias sociais fortes e bem desenvolvidas! O oposto é verdade – não há país com tecnologias sociais ruins que seja bom em inovação, independentemente de seus recursos naturais, e de suas políticas macroeconômicas. Tecnologias sociais têm uma infl uência enorme, e não só na escala dos países, mas na das empresas também...”.

As tecnologias sociais é que dão as cartas em qualquer escala em que haja humanos trabalhando para produzir algo juntos. Pode ser uma empresa, pode ser um país ou uma associação deles, como a zona do euro. Se o Brasil é ruim em inovação, pode apostar que as causas estão na fraqueza de suas tecnologias sociais, não na carência de investimentos em tecnologias físicas.

Ainda Eric Beinhocker: “No final dos anos 90, começou-se a notar um rápido aumento na produtividade da economia americana. No início, pensou-se que a origem eram as tecnologias físicas. Houvera um grande investimento em TI nas décadas anteriores. A McKinsey, porém, concluiu outra coisa – a causa real do aumento de produtividade foram mudanças na forma pela qual as empresas se organizavam e se gerenciavam, ou seja, inovações em tecnologias sociais. Eles estudaram vários setores da economia e, em particular, o varejo, onde investigaram o efeito das práticas do Wal-Mart. Inovações em formatos de negócio (com lojas enormes), somadas a sua eficiência logística, tornaram o Wal-Mart 40% mais produtivo que seus concorrentes. Isso os forçou a imitar as inovações organizacionais do Wal-Mart, e sua produtividade aumentou em 28% . Enquanto isso, o Wal-Mart continuava a inovar, aumentando a sua em mais 22%. Essa corrida ‘armamentista’ em tecnologias sociais no varejo representou quase um quarto do aumento total da produtividade dos EUA no mesmo período. Inovações em tecnologias sociais em outros setores da economia deram conta de praticamente todo o restante do crescimento americano”.

Não foi “computador”, não foi TI, foram tecnologias sociais: gestão de estoque, logística, relacionamento com fornecedores... Exemplos como esses são comuns. A IBM, ressuscitando das cinzas no início dos anos 90 graças à reinvenção de suas tecnologias organizacionais. A Xerox, perdendo o bonde da história porque só era boa em tecnologias físicas. O famosíssimo Palo Alto Research Center da Xerox criou dezenas de produtos que tornaram outras empresas bilionárias, não ela. Ela era campeã em tecnologias físicas, mas não sabia vender o que criava; faltavam-lhe processos de comercialização.

COMPETIÇÃO É IMPORTANTE

Empresas que enfrentam competição têm de descobrir, permanentemente, meios de produzir alta qualidade com custo baixo. É uma busca sem fi m. Quem não é forçado a agir segundo essa disciplina (empresas monopolistas ou estatais, por exemplo) tende a oferecer produtos fraquinhos, que apenas dão para o gasto, e que sempre são produzidos com custos altos demais. Ainda a Xerox: até os anos 60 a empresa não tinha concorrentes, pois estava protegida pelas patentes do processo de fotocópia que criara. Quando expirou a proteção e os competidores surgiram (principalmente os japoneses), foi um desastre. Demorou uma década para que a empresa voltasse a ser respeitável. Teve de melhorar a qualidade de seus produtos, acelerar a inovação e aperfeiçoar processos internos. Conseguiu reduzir custos de fabricação em 20%, o que mostra quão inefi ciente era. Um padrão semelhante aconteceu na indústria automobilística que, até a entrada dos japoneses, era uma espécie de clube de comadres das quatro grandes montadoras americanas. A nova competição forçou-as a se mexer. Achataram sua pirâmide hierárquica, introduziram o processo just-in-time na gestão dos estoques, terceirizaram etapas dos processos de fabricação, modernizaram fábricas etc.

Agora o “conto dos inovadores” fazia sentido quase totalmente. Competição, mercado, tecnologias sociais predominando sobre as físicas, tudo isso estava o.k. Porém, eu ainda não tinha amarrado o significado da confiança entre indivíduos como o elemento central da coisa toda. O que confiança tem a ver com mercado? Com competição? Com regra da lei? Com meritocracia? Veja o que descobri.

Num país inovador, as tecnologias sociais asseguram aos indivíduos (aos Zés Manés comuns, como eu e você) que vale a pena colocar esforço pessoal em nossos empreendimentos. Vale a pena colaborar. No enredo do conto, trust (confiança) é o elemento no qual todos os demais estão contidos. Trust não é virtude de caráter ou qualidade cristã, tem de ser cultivado. Quem o cultiva e mantém são as instituições do país. Cultura conta, e muito.

Achei que seria bastante útil colocar essa história toda num contexto mais amplo. Perdoe-me a digressão, mas ela vai nos ajudar a entender melhor por que nosso país é tão ruim em inovar. Vamos voltar lá atrás.

Antes da agricultura, só havia colaboração dentro de pequenos bandos que vagavam pela Terra em busca de alimento. Estranhos não entravam. Sobreviver exigia respeito a certas normas que eram instintivas, porque as pessoas do bando, como parentes, tinham genes em comum. Nesse caso, como a ciência mostra, a colaboração se instaura de modo muito mais natural do que entre estranhos genéticos. Todo mundo conhecia todo mundo, por isso, os fraudadores – aqueles que não faziam sua parte na empreitada comum – eram expulsos ou mortos. Para caçar animais grandes, como uma girafa, trabalhar em equipe traz grande vantagem. É preciso coordenar esforços – alguém cerca, alguém comanda os movimentos, determina o timing certo do ataque etc.

Uma girafa fornece mais carne do que uma família pode comer, portanto, os caçadores têm um incentivo extra para colaborar com outras famílias do mesmo clã. Abatida a presa, é preciso dividi-la rapidamente antes que cheguem animais que se alimentam de bichos mortos. Como a carne estraga se não for consumida logo, caçadores e suas famílias se empanturram e presenteiam com o que sobra outras famílias do bando, cujos participantes não foram tão bem na caça.

A RECIPROCIDADE...

Esse “presente” é interesseiro: se amanhã for meu grupo a não ter sucesso, eu espero que você retribua minha “generosidade” de ontem. Se você, ingrato, “esquece” o que fiz por você no passado e não retribui, todo mundo fica sabendo e sua reputação no bando sofre. Você pode acabar expulso e, sozinho, não conseguirá caçar. Você simplesmente não pode dar-se ao luxo de não retribuir.

A vida em grupo exige reciprocidade e em toda parte caçadores-coletores agem de acordo com essa lógica – “para minha família primeiro, se sobrar, para a sua”. Para estranhos (que vão concorrer pela mesma girafa), a morte. A agricultura foi a tecnologia (social) decisiva para a civilização porque levou à divisão do trabalho em larga escala. Rompeu a mentalidade “soma zero” do bando, e ele virou vila, cidade, reino. Ao admitir a entrada de estranhos no bando, a agricultura resolveu um problema complicadíssimo: coordenar e motivar muita gente com vistas a um objetivo comum.

A reciprocidade veio sendo programada em nós desde tempos ancestrais. Uma descoberta recente é a importância disso que podemos chamar de “senso de justiça”, algo baseado na noção de reciprocidade. “Eu te ajudo hoje, mas espero a contrapartida amanhã.” Numa série muito engenhosa de experimentos, Leda Cosmides e John Toby, da Universidade da Califórnia, mostraram que o animal humano é programado pela evolução para detectar injustiça. Confi ança (trust) e detecção e punição da injustiça estão no coração da sociedade, no centro da idéia de civilização.

Fiquei perplexo ao tomar conhecimento disso. Eu já havia percebido que esse tema (reciprocidade- justiça-confi ança) é o eixo central em qualquer comunidade inovadora. A percepção de que “as coisas são injustas por aqui” corrói e trava tudo. É um pecado mortal. Jack Welch conta como uma experiência, logo no início de sua carreira na GE, moldou sua visão sobre como pessoas devem ser gerenciadas: um prêmio em dinheiro, sempre no mesmo valor, distribuído por toda a organização fez com que ele pedisse demissão (depois reconsiderou), pela revolta de ver pessoas desiguais tratadas igualmente. Injustiça! Injustiça! Meritocracia – a cada um de acordo com seu desempenho – foi um dos pilares da filosofia de Welch como CEO da GE.

Confiança e punição da injustiça são tão importantes para os humanos que, muitas vezes, preferimos nos prejudicar pessoalmente para impedir uma “injustiça”. Outro desses experimentos fartamente documentados dá conta da seguinte situação: duas pessoas devem dividir uma soma em dinheiro (R$ 100, digamos). Para que possa haver a partilha, ambas têm de concordar. Uma delas propõe quanto cada uma vai receber, e a outra aceita ou rejeita. Se rejeitar a proposta, ninguém ganha nada. Seria de esperar que mesmo um rateio de 99/1 fosse aceito, porque, racionalmente, R$ 1 é melhor do que nada. Na prática, porém, pouca gente aceita uma divisão menor do que 70/30. Se você ousa propor menos que isso, o outro jogador veta a partilha e prefere ficar sem nada. O considerado “justo” é 50/50, meio a meio. Qualquer outra coisa é percebida como violação da idéia de reciprocidade programada em nossas mentes.

A revista The Economist diz: “A grande descoberta foi a identificação do papel da confiança (trust) como eixo da evolução humana... Confiança permite que estranhos colaborem, por meio de um processo que envolve a contabilização de quem faz o que e quando, e também a punição dos fraudadores. Fora os primatas, só os morcegos confiam assim em estranhos (não parentes), mas o mecanismo é o mesmo: morcegos bem alimentados regurgitam uma parte do alimento para colegas que estão famintos, e fazem isso esperando a retribuição quando forem eles que estiverem famintos”.

Matt Ridley, autor de livros clássicos sobre esse tema, diz que a reciprocidade é como uma espada de Dâmocles sobre nossas cabeças. Repare como nosso dia-a-dia está cheio de manifestações como as seguintes: “Nós já os convidamos duas vezes para jantar em nossa casa, e eles nunca retribuíram”; “Ele só está me convidando para a festa para que eu fale bem dele em minha coluna na revista”; “Depois de tudo que eu fiz por ele, como ele pode agir assim comigo?”; “O que eu fiz para merecer isso?”; “Você me deve essa”. Obrigação. Dívida. Barganha. Contrato. Troca. Acordo. Nossa linguagem e nossas vidas são permeadas pela idéia de reciprocidade.

Quando estamos em ambientes em que se exercita cooperação e reciprocidade, nosso instinto de cooperação nos levará a cooperar também. Nossas mentes tiram uma amostra da população ao redor e, se as pessoas são cooperativas, tornamo-nos como elas. Em um ambiente trambiqueiro, porém, cujas normas sociais não dão suporte à cooperação, nosso software nos torna permanentemente desconfiados. Todo mundo protege o próprio traseiro.

Países inovadores têm sistemas operacionais que levam a tecnologias sociais robustas, que garantem alto nível de cooperação baseada em reciprocidade. Os módulos desses sistemas operacionais são os elementos do “conto dos países inovadores”. Não há nenhum país com cultura forte em todos os elementos do sistema operacional. Também não há maneira única de implementar esses elementos. O que estou dizendo é que todos os países inovadores têm, em média, registros favoráveis em todos os elementos, mesmo que seus sistemas operacionais sejam, como são, bem diferentes.

E O BRASIL?

Somos ruins em inovação porque em nosso país não existe confiança baseada em reciprocidade em nível suficiente. Nossas tecnologias sociais para garantir isso são defi cientes. Essa é a resposta à pergunta que dá título a este artigo.

Em qualquer país há os que enxergam o mundo como um “jogo de soma zero” e os que o vêem como “jogo de soma não zero”. Lembre-se: se sua mentalidade é “soma zero”, você vai agir para pegar a maior fatia possível do bolo, antes que outro o faça. Você acha que só pode ganhar se outro perder. Em vez de investir suas energias na busca de possibilidades (necessariamente cooperativas) de se dar bem, você opta por ser um predador. Enquanto um equivalente seu, que vive na Noruega ou no Vale do Silício, empreende, arrisca e inova, você está preso à lógica “soma zero”. Não é só sua culpa. A corrupção, em qualquer sociedade, é resultado de duas coisas: escolhas individuais e normas sociais. Juntas, as duas defi nem o nível de corrupção de um país (não sou eu que digo, são pesquisadores de algumas das melhores instituições do mundo).

Há ambientes em que você não consegue não ser corrupto, mesmo que queira. Num ambiente trambiqueiro, todo mundo vira “esperto”. Nesse tipo de ambiente, corrupção, desonestidade e roubalheira são normas culturais. Todas as sociedades “soma zero” são assim. As atitudes morais também são distorcidas: “Estou apenas me garantindo... Se eu não pegar, outro pega”. Uma série de brilhantes experimentos mostrou isso.

Imagine uma população na qual alguns agentes têm mentalidade “soma zero” e outros, mentalidade “não zero”. À medida que o tempo passa, os agentes “não zero” descobrem que podem ficar mais ricos cooperando uns com os outros. Nesse ponto, eles começam a ser atacados pelos “soma zero”, que vão querer sua fatia do bolo sem ter colaborado para que ele crescesse (é da natureza deles, entende?). Esse conflito vai baixar os retornos propiciados pela cooperação, e pode levar a uma situação em que os agentes “não zero” se convencem de que cooperação não vale a pena; aí eles se transmutam em “soma zero” também. Não é uma tragédia?

Quando os pesquisadores modelaram essa dinâmica, descobriram que existe um pontolimite. Quando, numa sociedade, os não cooperadores ultrapassam os cooperadores, a colaboração não se sustenta mais no nível necessário para produzir riqueza, e o país cai no que chamam de “armadilha da pobreza”. Aí está a razão pela qual países inovadores prezam tanto a “regra da lei” – é ela que garante que o pessoal “soma zero” será contido, e não conseguirá contaminar o país. Regra da lei é condição para inovação.

Em 1996, uma pesquisa perguntou o seguinte a pessoas de vários países: “De modo geral, você acha que, em seu país, a maioria das pessoas é confi ável?”. A diversidade das respostas foi impressionante. Os países em que a confi ança é mais arraigada são Noruega (65%) e Suécia (60%). No Peru, 5%, e no Brasil (o lanterninha absoluto), 3%.

Junte tudo isso e veja nossa posição no índice de inovação do Insead – o Global Innovation Index, GII (o quadro está na página 62) –, um modelo que indica o grau no qual um país está respondendo aos desafios da inovação. O Brasil está em 40º lugar entre 106 países. Você pode não achar tão ruim, mas é; todo mundo que interessa está na dianteira. Honestamente, eu preferiria estar à frente de Índia e China (não estamos), em vez de Tanzânia e Etiópia, como estamos. Ah, eu ia esquecendo: também estamos à frente da Argentina (63º lugar), ganhamos dos hermanos de novo. Dos cinco fatores diretamente relacionados à capacidade de um país para inovar, o GII dá destaque a dois: “Instituições e políticas” e “Negócios, mercados e fl uxos de capitais”. Coisas como qualidade do sistema judiciário, tempo necessário para abrir uma empresa, tamanho do mercado informal etc. Tudo a ver com “confiança” no sistema operacional do país. Tudo a ver com o enredo do “conto dos inovadores”.

Reformar os sistemas jurídico e políti co do Brasil é mais importante para a inovação do que “investimentos em inovação”. Consolidar as agências reguladoras (que todo país inovador valoriza, mas que nossos governantes desdenham, dizendo que são invenção neoliberal). Essas “coisinhas” produziriam mais efeito sobre a inovação do que todos os investimentos em “tecnologia” que possamos fazer, porque atuariam diretamente no coração do problema: nossa visceral falta de trust. Por aqui, investimento em tecnologias sociais tem de vir antes.

Alta confiança, alta cooperação que gera mais confiança, mais inovação etc. Infelizmente, para nós, o contrário também é ver dade. A relação de causa e efeito entre confiança e riqueza não é perfeita (pois confiança não é o único fator que determina os níveis de cooperação de um país), mas, cá pra nós, você não acha que já temos pistas suficientes para explicar nossa incompetência em inovar, não?

Eu ia aproveitar para falar mais das simulações em computador que corroboram essas conclusões (os caras modelaram a corrupção, é mole?). Elas estão entre as aplicações mais bacanas da técnica científi ca nas últimas décadas, mas meu espaço acabou. Além de tudo, quero ler mais referências brasileiras para não dizerem que estou exagerando, influenciado por idéias “de fora”. Tenho aqui comigo uma série de reportagens do jornal O Globo, pu blicadas no primeiro semestre deste ano, que um amigo me recomendou. É sobre impunidade. Meu amigo disse que a conclusão é inequívoca: quem transgride a lei no Brasil só é punido se for pobre. Você leu?


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